Líder, o fenômeno da Ultramasculinização

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Líder, o fenômeno da Ultramasculinização

Líder, o fenômeno da Ultramasculinização

Apesar dos vários progressos alcançados pelas mulheres no mercado de trabalho, com muitas delas alcançando posições gerenciais, é ainda raro vê-las ocupando postos de alta liderança.

De acordo com uma pesquisa global da Grant Thornton, em 2018 apenas 24% dos cargos de alta liderança são ocupados por mulheres. Já no Brasil, as mulheres ocupam somente 16% do universo total dos cargos de liderança, segundo dados da consultoria Korn Ferry.

Entre os vários fatores que explicam esse fenômeno, é impossível negar que existe uma certa resistência às mulheres na liderança. Mas o que estaria por trás desse fenômeno? Essencialmente, um conjunto de associações mentais conscientes e inconscientes amplamente compartilhadas em nossa cultura, sobre mulheres, homens e líderes.

Inúmeros estudos afirmam que as pessoas associam mulheres e homens a diferentes traços. Podemos fazer um recorte na revolução industrial e dizer que esta reforçou a associação da mulher à esfera doméstica e do homem à esfera pública (Eric HOBSBAWM – Mundos do Trabalho) assim como determinou que o papel de provedor seria do homem e a mulher dependente deste. Claro, tudo isso apoiado pelo modelo de família  nuclear (Nancy FRASER – le féminisme en mouvements).

Em consequência, homens são associados a características que conotam e definem Liderança. Essa realidade tem provocado efeitos um tanto perversos no desenvolvimento da carreira das mulheres. Vejamos os depoimentos a seguir.

“Este episódio aconteceu no começo dos anos 2000, quando estava começando a galgar os degraus da hierarquia corporativa. Tinham me atribuído a missão de explicar para um grupo de executivos da consultoria onde trabalhava quais eram os produtos e serviços ofertados por minha área de negócios. O objetivo era facilitar o entendimento das especificidades do nosso mercado e dos clientes-alvo para que eles nos ajudassem a fazer vendas cruzadas.

Após minha apresentação, que transcorrera tranquila e sem incidentes, recebi um feedback do meu chefe. “Você foi bem, mas precisa engrossar mais a voz.” Lembro que, na hora, não levei o comentário a sério, achei que era uma piada. Com o passar do tempo, no entanto, fui entendendo o que ele quis dizer. A figura do líder é ultra masculinizada! Toda vez que pensamos na palavra líder muito frequentemente são figuras de homens que enxergamos em nossas mentes. Inclusive as mulheres. Na maior parte das empresas a definição de líder traz atributos considerados da energia masculina e associados ao sexo masculino. Assim, nosso inconsciente age com um viés sexista na hora de escolher seus líderes.

Conforme fui crescendo profissionalmente, percebi que boa parte das mulheres que ocupavam cargos de liderança tinham temperamentos fortes e se mostravam decididas e enérgicas. Reparei também em seus tons de voz: com poucas exceções, usavam um timbre mais grave, como o naipe dos contraltos num coro. Parecia que a voz mais aguda, mais feminina, não era apropriada para mulheres líderes.”

“Há alguns anos trabalhei num grande conglomerado americano que fabrica desde turbinas de avião a equipamentos sofisticados de automação e controle. A mulher com a mais alta posição de liderança na América Latina era uma Diretora Jurídica com os atributos ditos masculinos desenvolvidos como qualquer outro colega assertivo. Era considerada dura, agressiva e arrogante, era temida por muitos de meus colegas. Nos corredores, era chamada vulgarmente de sapatão”.

A teoria do labirinto nos mostra que uma grande parte das mulheres que alcançaram cargos de liderança o fizeram desenvolvendo sua capacidade para adotar os ditos comportamentos masculinos que integram os atributos que definem cargos de liderança. Este desafio sistêmico estimula as crenças sexistas e estereotipadas dos atributos femininos que definem as mulheres como desqualificadas para os papéis de liderança. Assim, privamos as organizações dos valores ditos femininos que priorizam os sentimentos e as relações e permitem, por exemplo, colaboração, receptividade e empatia. Tanto os atributos femininos como masculinos são essenciais para a liderança e ambos os sexos podem desenvolvê-los.

Mas, afinal, o que queremos dizer com esses exemplos? Que é preciso engrossar a voz e assumir um comportamento agressivo para se firmar como uma líder?

Não, longe disso. Nossa intenção, isso sim, é chamar a atenção para esse fenômeno que liga atributos ditos masculinos ao sexo homem e à definição de liderança, excluindo as mulheres do jogo.

O fato é que uma mulher que aspira alcançar o sucesso profissional, particularmente para ganhar uma posição de poder e tomada de decisão, fica, por assim dizer, “presa em uma armadilha”. Se exibe características tradicionais de seu gênero cultural (feminilidade), ela poderá estar condenada ao fracasso profissional, já que seu poder e autoridade podem ser facilmente desafiados por seus colaboradores e pelos homens que competem com ela. Por outro lado, se ela decide assumir traços masculinos estereotipados de um líder de equipe, ela certamente se abre à acusação de que está “perdendo sua feminilidade“.

Será que a responsabilidade é unicamente da mulher que deve adotar estratégias para lidar com o problema da ultramasculinização do papel do líder?

Nós acreditamos que este trabalho é responsabilidade de toda sociedade. Ele passa pela transformação cultural. Para alcançar uma equidade de gênero verdadeira e que se perpetue no tempo, é necessário ir muito além dos números e da implementação de práticas e KPIs. É preciso falar sobre os desafios sistêmicos enfrentados pelas mulheres e homens com mais profundidade, maior diálogo, mais empatia.

Precisamos trazer uma nova mentalidade na qual mulheres e homens tenham o mesmo espaço tanto na esfera profissional como doméstica. Que possam escolher ser pessoas integrais e, assim, um dia vermos 100% dos pais tirando licenças no nascimento dos filhxs e as mulheres com a mesma representatividade que tem na sociedade nos cargos de liderança e conselhos.

Que a licença paternidade/maternidade seja ditada por valores de cuidado que permeiam a escolha conjunta ou individual de se ter filhxs. Que os cargos de liderança valorizem atributos femininos e masculinos.

Mariana Mouret & Vera Regina Meinhard

Fonte:
https://www.linkedin.com/pulse/l%C3%ADder-o-fen%C3%B4meno-da-ultramasculiniza%C3%A7%C3%A3o-vera-regina-meinhard/
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