Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

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Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

Muitas pessoas me perguntam sobre a linguagem inclusiva.

Algumas me dizem que isto não respeita a língua portuguesa. Outras ficam até irritadas e agressivas quando se sugere uma modificação de texto. Coisas escritas se perpetuam e contribuem de maneira muito forte com a cultura.

Vale lembrar, que uma língua traz em si o contexto social, podendo perpetuá-lo ou fazê-lo evoluir. É um sistema desenvolvido e “convencionado” pelos humanos para facilitar a comunicação, uma destas convenções é, por exemplo, a Gramática. Para uma língua ser reconhecida como idioma, ela deve estar relacionada à existência de um Estado Político.

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

A concordância nominal, assim como os acentos, é uma regra gramatical. Esta regra estabelece na língua portuguesa, entre outras, que os determinantes (adjetivo, pronome adjetivo, artigo, numeral) concordam em número e gênero com o determinado (substantivo ou pronome) a que se referem.

Existe até uma expressão figurativa para confirmar nosso acordo pleno com alguém: “concordamos em gênero, número e grau”.

Se uma língua é uma convenção, um acordo entre pessoas para facilitar nossa comunicação, proponho uma análise sobre algumas evoluções já concedidas.

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

Por exemplo, a língua inglesa, hoje não tem concordância de gênero. Mas nem sempre foi assim. Historicamente, como em todos os idiomas indo-europeus, o inglês antigo, ou anglo-saxão, tinha substantivos para determinar se falamos de objetos considerados masculinos, femininos ou neutros, assim como diferenciar mulheres e homens. Parece que esta evolução ocorreu, na língua falada, por volta do século 9. O objetivo seria facilitar a compreensão entre as pessoas. Outros dizem que era uma questão de som. Na língua escrita, esta evolução teria ocorrido no século 10, com a coletânea inglesa dos famosos Evangelhos de Lindisfarne.

Outro exemplo, o Novo Acordo Ortográfico do português que entrou em vigor em 2009. O objetivo foi unificar a grafia de países que têm como língua oficial a língua portuguesa. Decidimos mudar a intensidade com que as sílabas se apresentam quando pronunciadas, fizemos evoluir a música da nossa língua.

Também podemos explorar o tema trazendo a diferença nas convenções estabelecidas nas diferentes línguas. Por exemplo, em alemão, ‘sol’ é feminino e ‘lua’ é masculino. Exatamente o contrário do português.  Em francês temos por exemplo: borboleta, caneta, coragem, dúvida, escolha, felicidade e viagem identificadas como palavras masculinas. E, banco, relógio, sorvete, dentre outras, identificadas como palavras femininas.

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestresA inclusão anual de novas palavras nos dicionários, é outro exemplo desta evolução das línguas. Ela ocorre em função da importância que a palavra apresenta na comunicação entre as pessoas em uma sociedade, pois defini fenômenos antes não identificados. Podemos citar o fenômeno do Gaslighting, palavra eleita no ano de 2022 para integrar o dicionário Merriam-Webster. Também vale citar “Tóxico”, palavra eleita pelo dicionário Oxford em 2018 e “Goblin Mode” eleita em 2022.

Os fatos acima nos mostram que fatores sociais influenciam a evolução das línguas.

Nossa língua portuguesa foi criada em função de um contexto social. Ela descende de outra, o latim, e o primeiro marco para o surgimento da língua portuguesa ocorreu no século II a.C..

As diferentes evoluções abrem espaço para debatermos a questão da concordância de gênero da língua portuguesa. Usar o gênero masculino para se referir a um grupo de pessoas, de mulheres e homens, é uma convenção que foi definida na criação da língua, guardando a mesma convenção do latim. Tudo que é convencionado recebe acordo em função de entendimentos prévios e normas baseadas na experiência recíproca de uma época.

A sociedade evolui. E, me parece importante abrir espaço para a demanda das mulheres. As mulheres representavam 51,1% da população do país em 2021, totalizando 108,7 milhões, enquanto os homens correspondiam a 48,9% (103,9 milhões). Em dez anos, não houve diferença significativa nessas participações.

Com a representatividade populacional das mulheres, fica difícil entender que ainda continuemos a generalizar, palavras com gênero, pelo artigo e substantivo que define o grupo de homens. Isto tanto no singular, como no plural.

Vou trazer um exemplo que me surpreende muito pelo paradoxo que ele  carrega.

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

A mulher ainda sofre o ônus da maternidade.  Para quem acredita que não, vamos falar de números. Em pesquisa de 2016 de Cecília Machado e Valdemar Pinho Neto, The Labor Market Consequences of Maternity Leave, verificou-se que aproximadamente 50% das mulheres que tiram licença-maternidade estão fora do mercado de trabalho 24 meses após a licença.

Estas mulheres são demitidas por iniciativa do empregador e sem justa causa. Aprende-se também, que o nível de escolaridade influencia este fenômeno. Mulheres com maior escolaridade apresentam queda de emprego de 35% nos 12 meses após o início da licença, enquanto a queda é de 51% para as mulheres com nível educacional mais baixo.

O assunto é sério e a discriminação é grave e inaceitável. Por esta razão, de acordo com a premissa do GRI (Global Reporting Initiative), as organizações devem ter transparência e apresentar indicador sobre o turnover de mulheres 12 meses após o retorno da licença de maternidade.

Quando pergunto para um homem como ele se sentiu no momento de contar para sua hierarquia e colegas na empresa que seria pai, a resposta geralmente é “muito feliz”. Para muitas mulheres, este é um momento de muito estresse, pois associam gravidez a perda de emprego e carreira interrompida.

Muitas pessoas ainda acreditam no instinto materno e que a mulher nasce sabendo cuidar das crianças. Muitas ainda também acreditam que ter bebês é a realização das mulheres, e cobram de forma assediadora uma ação daquelas que decidem não ser mães.

Se as mulheres ainda são consideradas e ainda exercem majoritariamente o papel de cuidar das crianças, alguém me explica: por que a reunião de desempenho das crianças nas escolas se chama “Reunião de pais e mestres”?

Convenções da Língua e o paradoxo da reunião de “pais” e mestres

As mães ainda são as que frequentam majoritariamente estas reuniões. A tal ponto, que as pessoas em função de ensino no fundamental mandam caderninho de mensagem sempre se endereçando à mãe!

E, este é apenas um dos paradoxos das relações de gênero hierarquizadas que tanto me espantam e subjugam tantas mulheres.

Eu quero ler e ouvir “Reunião de mães, pais e mestres”

Fica aqui o convite para refletirmos em conjunto sobre formas mais hábeis de generalizar em função do gênero. Temos ainda muito que evoluir. No que me concerne, eu tenho adotado uma busca de escrita na qual evito generalizar pelo masculino. Decidi iniciar pelo tema que conheço melhor e fiquei convencida que precisamos ser pessoas mais inclusivas na nossa comunicação.

Neste caso, eu prefiro fazer as coisas “em conjunto” em vez de “juntos”. Prefiro as marcas que se direcionam à sua “clientela” em vez “dos clientes”. Adoraria ver as mídias que assino escreverem “as pessoas assinantes” em vez de “nossos assinantes”.

Nos momentos de acolhida, escrita ou oral, adoraria ouvir “Bem-vindas e Bem-vindos” em vez de só “Bem-vindos”.

Acredito que as mulheres se sentirão mais convidadas a postularem para vagas que dizem que buscamos “uma pessoa para ocupar o cargo de Supervisão / Coordenação / Gestão da área X” em vez de “um Supervisor / Coordenador / Gestor”.

Quando minha mãe ou meu pai falam dos seus descendentes, me sinto parte quando dizem “minha filha e meu filho” em vez de “meus filhos”.

Quando uma empresa diz “nossas pessoas colaboradoras”, as mulheres se sentem pertencendo àquele grupo, em compensação quando falamos de “nossos colaboradores”, parece que só os homens contribuem.

Quando faço parte de um evento, me sinto nele quando se fala de “pessoas participantes” em vez “dos participantes”.

E assim por diante, “nossos visitantes / nossos consumidores / nossos parceiros / nossos distribuidores / nossos convidados / nossos usuários”, podemos transformar todas estas palavras em inclusivas para as mulheres, e tantas outras pessoas, fazendo pequenos ajustes na maneira de escrever, como por exemplo, “as pessoas nos visitando / as pessoas consumidoras / pessoas parceiras / pessoas convidadas / pessoas usuárias”.

Ou será que podemos mudar a convenção e utilizar a generalização com o gênero que designa as mulheres? Afinal as mulheres são maioria! Eu prefiro a inclusão e você?

Por enquanto falamos de comunicação para todas e todos. Próximo passo, estudar melhor nossa comunicação para entender o fenômeno da linguagem neutra e falar de todes. Se você já se sentiu à vontade com a necessidade de incluir mulheres na sua comunicação, que tal dar mais um passo para uma verdadeira comunicação neutra e incluir todes?

Nem me atrevo a escrever sobre o assunto. Para conhecer e aprender como utilizar e falar sobre linguagem neutra no Brasil, recomendo o “Manual  de Imprensa – Comunicação para todes, todas e todos”.

Boa leitura

Espero que gostem!

Quem tem formas de comunicar incluindo as mulheres e pessoas binárias,  ao invés de generalizar pelo artigo que designa os homens, conta para a gente. Assim vamos enriquecendo nosso repertório.

Nota: Não se usa mais a adição de X ou @ como ferramenta de neutralidade de gênero, pois é uma dificuldade para pessoas com deficiências visuais ou dislexia. Além disso, este tipo de símbolo não pode ser incorporado na língua falada, o que impossibilita o seu uso no dia a dia.

Sobre Vera Regina Meinhard

Sou Vera Regina Meinhard, amo conectar pessoas para promover a consciência sobre a importância da inclusão da diversidade no alcance do sucesso sustentável, em especial a igualdade de gênero. Mestra em Sustentabilidade & Governança, sou criativa, inovadora, realizadora de sonhos e mãe da Saskia. Meu propósito é contribuir com o desenvolvimento das pessoas.

Por meio de diferentes abordagens, coloco-me integralmente à disposição deste propósito atuando na sociedade como escritora e empreendedora para trazer soluções em desenvolvimento humano: Consultoria em Gestão de Cultura Organizacional voltada para ESG e Inclusão da Diversidade, Facilitação de workshops, Mentoria Individual e Coletiva, Palestras, Treinamentos e Coaching.

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