Câncer, o estigma (Episódio 2)

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Câncer, o estigma (Episódio 2)

Câncer, o estigma (Episódio 2)

Vamos falar dos preconceitos desnecessários com o câncer?

Rapidamente me deparei com a reação das pessoas ao dizer:

“estou com câncer de mama”.

Parece que CÂNCER é a única palavra que ouvem. Foi preciso digerir o medo que a expressão das pessoas me causava. A solução, foi fortalecer minha autoestima, para ter a certeza de que o câncer não me definia. Assim, pude lidar com leveza e assertividade em cada situação que vivi.

Câncer, o estigma (Episódio 2)Como comentei no Episódio 1, o câncer é uma experiência forte que abre portas incríveis para o autoconhecimento. Dei um salto quântico também no processo de “cessar julgamento”. Aprendizado iniciado na França em 2011 no Centre International do Coach. Quando falo deste tema, gosto muito de recomendar o livro de Don Miguel Ruiz: Os Quatro Compromissos Toltecas (1). Ele contribuiu muito com minha iniciação neste processo.

Somos seres educados para julgar. Impossível parar de julgar de forma definitiva. O que acredito possível é se observar, olhar para nosso julgamento, e assim fazer o esforço de cessá-lo. Isto exige um trabalho de humildade para sair da nossa bolha e perceber que outras visões existem, outros modos de interpretar são construídos a partir de outras vivências. Além disto, é preciso entender que o óbvio para mim, está muitas vezes longe de ser evidente para a outra pessoa.

Ao lidar com questões do meu quotidiano fui identificando momentos de pavor no olhar das pessoas quando falava do câncer. Ou estaria interpretando a partir do meu olhar?

Tive que tomar muitas providências em função do meu tratamento. Se me lembro bem, minha primeira experiência, fora do círculo da família e amizades, foi na academia de ginástica.

Como de hábito, fui bem direta com o gerente da unidade que frequento,

 “Joãozinho, eu estou com câncer de mama e terei que me ausentar durante um mês após a cirurgia e gostaria de saber como recupero este mês na minha assinatura anual”.

Ainda tenho em mente a expressão dele: olhos esbugalhados e tensão imediata nas bochechas. Tive um sentimento bizarro. Era como se ele tivesse mais lugar de fala do que minha equipe médica. Para esta equipe tudo estava bem, e a expressão dele, para mim, anunciava gravidade, risco importante.

Câncer, o estigma (Episódio 2)

Foi aí que percebi algo incrível. Para tomar conta de mim, eu tinha que tomar cuidado da outra pessoa ao contar que estava com câncer de mama. As pessoas ainda têm total desconhecimento da evolução da ciência. Continuam achando que estão sempre diante de uma pessoa correndo risco de vida. E, na realidade, a evolução da medicina permite uma avaliação muito precisa, com diferenciação dos tipos de cânceres de mama, o que permite adequar o tratamento.

“O câncer de mama pode ser curado. Quanto mais cedo ele for detectado, mais fácil será curá-lo. Se no momento do diagnóstico o tumor tiver menos de 1 centímetro (estágio inicial), as chances de cura chegam a 95%.” (2) Recomendo a cartilha do Hospital AC Camargo.

Tive que parar, mais uma vez, e olhar para dentro para identificar minha própria visão sobre o câncer. Busquei na minha memória e lembrei do meu próprio sentimento e julgamentos com respeito à esta doença antes de conhecer melhor a situação atual dos diagnósticos e tratamentos. Realmente existe um estigma do câncer, e eu mesma o reproduzi durante muito tempo. Meu próprio julgamento espelhava a história distante da minha família. Foi mais um aprofundamento no exercício de lembrar que eu só imagino o julgamento da outra pessoa porque ele já passou por mim. Se este pensamento nunca tivesse feito parte de mim, seria impossível eu imaginar que a outra pessoa o tivesse. Eu mesma tive que trabalhar em mim para extirpar este estigma.

Câncer, o estigma (Episódio 2)

Frequento o AC Camargo desde 2019 para fazer o acompanhamento de nódulos na Tireoide. Lembrei-me do meu olhar para as pessoas em tratamento e das questões que rolavam na minha cabeça. Isto me colocou na humildade de aprendiz. Mudei meu discurso para:

“Joãozinho, preciso te contar algo muito sério que estou gerenciando bem com a minha equipe médica. Preciso falar disto para saber como você pode me ajudar. A primeira coisa que preciso te dizer é que estou bem. A segunda, é que estou com câncer de mama, e isto tem tais e tais impactos nas minhas atividades aqui.”

Percebi que além de julgar a expressão dos outros a partir da minha interpretação, era direta para evitar o sentimento de finitude que isto podia me causar. E, também o gerenciamento da proximidade que esta situação impõe com pessoas do quotidiano. Na maior parte das vezes, pessoas com quem tenho zero intimidade.

Quando voltei para a academia dia 8 de julho, eu tinha que avisar cada coach sobre minhas dificuldades. Precisava lembrar que eu estava um mês sem atividades físicas, e voltava com uma cicatriz na axila e outra na mama.

Pacientemente e amorosamente, para cada pessoa, eu explicava que estava tudo bem. Precisava da ajuda dela para me exercitar de novo, no meu tempo, respeitando minhas limitações temporárias. Fui aprendendo a aceitar a conexão, o cuidado e carinho das pessoas.

Também tem pessoas com ausência total de empatia. O fato de eu não sentir nenhuma dor um mês após a cirurgia, fazia alguns e algumas acreditarem que eu não tinha nada. Precisei explicar que a cirurgia era apenas a etapa 1. E, que a cada etapa eu viveria condições físicas, emocionais e mentais distintas. Na volta da radioterapia, mais um exercício de paciência e humildade para reexplicar a situação. Refleti e percebi que talvez fosse um pouco de arrogância da minha parte acreditar que as pessoas deveriam se lembrar da minha história!  São tantas as pessoas que frequentam a academia, cada uma tem sua história. Impossível cada coach lembrar de todas.

Em cada retorno, era preciso pedir para me acolherem e me ouvirem. Era necessário reexplicar toda minha vivência do câncer em detalhe e em que momento me encontrava do tratamento. O mais difícil eram os coachs superatletas. A história de câncer de mama parecia distante da bolha deles e algo difícil de entender e gerenciar. Tive que ir cavando meu espaço. Estou limitada, não incapacitada. E afirmar quotidianamente: “o câncer não me defini”.

Eu estou bem, só tenho que adaptar meus treinos neste momento.

Câncer, o estigma (Episódio 2)

Precisei reconhecer a mudança do meu corpo, entender meus novos limites e me adaptar. Desafios me encantam, e neste momento meu desafio não é fazer mais metros de natação na piscina, nem melhorar a técnica. Meu Desafio é fazer exercícios para combater os efeitos colaterais do tratamento sem criar mais problemas. Para quem foi bailarina, tendo na maior parte da sua vida muita energia para fazer exercícios, este foi um grande desafio. Algo que jamais havia imaginado. Meu corpo precisava de um cuidado diferente daquele que estava habituada. O pior, tinha que deixar minha fragilidade evidente para que os coachs atletas parassem de ignorar meu estado físico.

Outra dificuldade que vivenciei diz respeito ao medo de algumas pessoas. Acho que estavam com receio de lidar com o fato de uma amiga próxima, uma pessoa da família,  estar com câncer. Ouvi várias vezes a frase “vai dar tudo certo”, ou ainda, “já deu tudo certo”.  Era o estigma do câncer se conectando com nossa finitude.

Ficava me perguntando: “o que vai dar certo ou já deu certo?”. Tinha a impressão de que elas tinham um contato com algo divino que as informava sobre meu estado. Como eu nunca senti, nem expressei qualquer dúvida sobre minha cura, levei tempo para entender que era, talvez, uma forma das pessoas se assegurarem. Outro ponto que talvez tenha permeado as relações, é a imagem que tinham de mim. Por mais que eu tenha me retirado da posição de cuidar de tudo, a imagem da Vera fortaleza, com a qual as pessoas ainda estavam acostumadas, precisava de tempo para ser refeita. Esta reação do “vai dar tudo certo” só colocava ainda mais em evidência como as pessoas ainda tinham dificuldade de encarar minha fragilidade momentânea, mas também, quem sabe, a delas com respeito ao receio de encarar o próprio medo da finitude. Aceitei, pontuando as vezes:

“Sim, tudo está acontecendo como a médica e médico previram, não há dúvidas sobre a cura. E quero que me ouçam, porque mesmo com tudo andando bem, tem muita coisa se passando. O “tudo vai dar certo” implica em muito empenho e mudança no meu quotidiano. E é disto que eu quero falar, porque é isto que me deixa por vezes triste.”

Câncer, o estigma (Episódio 2)Não é um milagre que faz tudo dar certo. Não é rezar mais que fará uma divindade, de qualquer religião, olhar mais para mim e me curar. Eu seria incapaz de acreditar que esta divindade escolheria minha cura em vez da cura de outra pessoa só porque rezo mais. Esta divindade não me corresponderia se assim fosse. Como acreditar que algumas pessoas se curam e outras morrem por mérito divino? Seriam melhores que as outras? Mais santas?

Não gente, somos todas e todos iguais perante qualquer divindade. A solução vem em função do tipo de câncer, do momento no qual foi detectado, entre outras questões médicas. Vem também, muito, em função do nosso estado de espírito. Aceitei “assinar um contrato de trabalho com o hospital AC Camargo” e focar na minha cura com leveza e amorosidade.

As orações de pessoas próximas? Sim, quero e aceitei todas que pediam paz espiritual para eu olhar para este momento com a mesma fé e coragem que vivenciei cada desafio ao longo desta vida rica em experiências, e fora da zona de conforto.

Também percebi uma certa obrigatoriedade de a pessoa paciente ter cara de doente, para ser vista como paciente.

Tenho uma sensação de que o fato de tomar minha cura em mãos e direcionar, incomodou muita gente. Assim como uma mulher afirmada e que direciona incomoda muita gente no mundo corporativo. “Ça vaut le détour” ver o vídeo da Gabriela Prioli sobre esta questão, ela explica de forma brilhante (3).

Eu sempre escolhi dirigir minha vida. Em nenhuma circunstância renunciei aos meus direitos de escolher e lutar pelo que acredito. Liderar e direcionar minha vida é mais importante do que ser “gostável”. Mesmo assim, esta experiência me fez aprender mais sobre onde colocar o ponteiro.

Esta é uma equação bem complicada quando você vive esta dependência de um mundo que desconhece. Isto me levou a me voltar para minha vulnerabilidade e entender melhor quais medos isto acionava em mim. O que significava, na minha fantasia, deixar este espaço para outra pessoa direcionar?

Trabalhei muito nos últimos anos para eleger as brigas que valem a pena e quais largar. Com o câncer, fiz mais um salto quântico, pois cada briga para direcionar minha cura, poderia significar alguém em zona de desconforto por minha causa. E, implicar em uma ação danosa para minha vida.

Foi assim que aprimorei minha vivência do lado positivo do “me despegar”, transformando esta competência em grande aliada das minhas características de posicionamento e direcionamento das situações. Estou aprendendo cada vez mais a me deixar ser orientada quando isto pode se manifestar mais eficaz.

Em cada etapa de todas as batalhas do câncer, me voltei para entender o que a situação que eu estava vivendo falava de mim.

Percebi que ao me deixar abalar pela arrogância do poder da medicina ou das pessoas do plano de saúde, eu entrava no lado negativo do direcionar. Eu me colocava em uma posição de firmeza desnecessária para me sentir segura, ativava o gatilho do querer controlar.

Aos poucos fui negociando comigo mesma e observando melhor quem era quem neste novo mundo. Com quem podia estabelecer uma relação de confiança e onde deveria tomar as rédeas de forma suave para influenciar minha cura positivamente.

Como disse no episódio 1, o câncer foi mais uma oportunidade para me desapegar de gatilhos e tornar minha vida mais leve. Melhorei minha capacidade em consagrar a energia para batalhas que valem a pena. Distinguir em que momento lutar e quando recuar ou me despegar para deixar fluir.

É como estar em uma piscina profunda, onde você não tem pé. Isto exige que nademos para alcançar a borda. E, é preciso, em função da distância, saber boiar para recuperar fôlego e não se afogar!

Também precisei tratar minhas crenças limitantes com respeito à alopatia. Precisei  descontruir o castelo que me fez acreditar que toda alopatia é algo ruim. Precisei me conectar com histórias da família que fizeram os alicerces desta crença. Sem isto seria impossível ficar em paz e aceitar que preciso tomar durante 5 anos um remédio bloqueador de hormônios. Fui fundo e consegui identificar o momento desta construção. Foi a morte do meu tio e padrinho em função da quimioterapia e não da própria doença.

Precisei trabalhar em mim de forma profunda para sair do meu radicalismo e entender que alguns dos avanços da medicina alopata são benéficos e valem a pena. Vou equilibrar os efeitos colaterais com homeopatia e tomar o remédio em paz. Nenhum radicalismo é bom, nem aquele que me fez acreditar que as medicinas alternativas são a única e melhor solução. Tudo é uma questão de somar os benefícios positivos de cada uma.

Como podem perceber, eu acredito que estudar e se aprofundar em si mesma é uma das melhores formas para descontruirmos crenças limitantes formadas em algum momento da vida. Estas crenças criam sombras e nos fazem escolher preferencialmente um lado, podendo deixar nossas decisões e comportamentos serem guiados por uma única verdade (4). É libertador quando substituímos crenças limitantes por valores que nos tornam verdadeiramente mais fortes, a vida fica muito mais leve!

Câncer, o estigma (Episódio 2)

Partindo dos meus próprios julgamentos e preconceitos, ao olhar para mim em vez de tentar consertar a outra pessoa, vivo meu desenvolvimento e evolução. Esta é minha fonte da juventude e felicidade.

Aproveito para agradecer todas as pessoas que cruzaram meu caminho durante meu tratamento e que de alguma forma contribuíram com minha cura e bem-estar. Também agradeço a paciência que tiveram comigo neste caminho de crescimento, pois muitas vezes sei que pude ser insuportável.

Espero que esta experiência seja útil e fiquem com curiosidade para lerem o próximo episódio.

  1. RUIZ, DON MIGUEL. Quatro Compromissos – o livro da filosofia tolteca. 13ª Edição.  RJ: Best Seller, 2010. Resenha: https://meinhardconnecti-6l7xrzkann.live-website.com/quatro-compromissos-com-o-seu-bem-estar/
  2. Cartilha do Hospital AC Camargo: https://accamargo.org.br/sites/default/files/2020-08/cartilha_cancermama.pdf
  3. Gabriela Prioli, Mulheres fortes: https://www.instagram.com/p/CPT3Q36h9Ws/
  4. MEINHARD, V.R. Vamos voar juntas?. São Paulo: Álbum de Memórias, 2023. p.104 – 120.

Sobre Vera Regina Meinhard

Sou Vera Regina Meinhard, amo conectar pessoas para promover a consciência sobre a importância da inclusão da diversidade no alcance do sucesso sustentável, em especial a igualdade de gênero. Mestra em Sustentabilidade & Governança, sou criativa, inovadora, realizadora de sonhos e mãe da Saskia.

Meu propósito é contribuir com o desenvolvimento das pessoas. Após 25 anos como executiva do Groupe Renault France, desde 2013, por meio de diferentes abordagens, coloco-me integralmente à disposição deste propósito atuando na sociedade como escritora e empreendedora para trazer soluções em desenvolvimento humano: Consultoria em Gestão de Cultura Organizacional voltada para ESG e Inclusão da Diversidade, Facilitação de workshops, Mentoria Individual e Coletiva, Palestras, Treinamentos e Coaching.

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Comments
  • Jurema Soriano
    reply
    10 de outubro de 2023

    Assim como o episódio 1, a leitura deste episódio 2 fluiu como quero imaginar que deveria ser.
    Cada palavra, cada aspas não colocadas, mas que estão aí, foram perfeitas. Tenho aprendido muito com o compartilhamento da sua vivência.

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