Câncer, Machismo e bem-estar das mulheres (Episódio 4)
Antes de eu iniciar este novo episódio, se você ainda não teve a oportunidade, convido você para ler os episódios 1- A surpresa do nenúfar, 2 – Câncer, o estigma e 3 – Câncer, a revolta com os processos.
No meu livro “Vamos voar juntas?” eu abordei o tema das relações de gênero hierarquizadas a partir da minha visão como executiva. Estudei academicamente e ilustrei os Desafios Sistêmicos com minha experiência de 25 anos como executiva em uma multinacional na França. Neste livro eu parti do profissional para o pessoal.
Só recentemente a vida me chamou para assuntos do quotidiano das mulheres. Assuntos que, de alguma forma, dizem respeito à todas nós. Independentemente de trabalharmos na esfera doméstica ou no mercado de trabalho remunerado.
O primeiro tema, me interessou quando conheci o Fabio Nogueira, CEO do Instituto Observatório da Longevidade. Nessa conversa, ele me inspirou, e escrevi algumas linhas sobre etarismo. Depois, veio a menopausa quando conheci a Luciana Borges, fundadora do 50 tons de Glamour. Quando ela me convidou para fazer uma live sobre meu livro, conversarmos sobre a problemática em torno da menopausa. Na sequência, fiz parte de uma banca na FGV EAESP que me conectou com as questões da menstruação.
Agora, o câncer me conectou com novas questões desta estrutura machista que podem afetar a autoestima de uma mulher.
Duas delas dizem respeito aos padrões de beleza.
O Laboratório Think Olga, ESGOTADAS, em sua pesquisa de 2023, realizada no Brasil, identificou que os padrões culturais e sociais de beleza impostos às mulheres impacta negativamente a saúde mental de 26% das entrevistadas. As expectativas de beleza física impostas são moldadas por padrões de beleza inatingíveis e irreais.
Conversando com algumas mulheres descobri que o fato de fazerem quimioterapia as afeta muito: se perdem os cabelos, se sentem menos mulheres. Nunca tinha parado para pensar nesta questão dos cabelos. Ela é mais uma asnice da nossa educação binária de gênero. A lista do que é ser mulher é muito extensiva. Vai muito além do azul é coisa de menino e rosa é coisa de menina. Ficar careca, nesta equação machista, não é coisa de menina. Ninguém imagina uma mulher careca por escolha ou hereditariedade.
Majoritariamente se pensa que uma mulher está careca porque deve estar com câncer. Um homem careca não desperta esta afirmação. As mulheres ficam expostas. Nossa intimidade, queiramos ou não, é desvendada pela ausência de cabelos, pelo lenço na cabeça, pela peruca.
Ouvi de médicos, histórias sobre a reação de maridos que, já na primeira consulta com o oncologista, perguntam: “minha mulher vai ficar careca?”. Se meu parceiro fizesse esta pergunta, eu acredito que me separava na hora. Eu sou muito mais do que um corpo. Uma reação destas me faz pensar que, no papel inverso, seria como se o tamanho do órgão genital dele fosse o fator determinante da nossa relação.
Diante destes padrões do sistema machista, imaginem o impacto negativo do “ficar careca” na autoestima da mulher.
Esta questão não passou pela minha cabeça, nem coração porque por volta dos oito anos de idade, intuitivamente, eu rompi com alguns padrões deste modelo machista.
Eu decidi cortar curtinho meus cabelos. Lembro da minha mãe e da cabeleira me dizendo que era melhor eu não fazer isto. Não sei como, convenci todas e sai de cabelo curto! Sem saber, eliminei uma das maiores representações do ser mulher no modelo machista: cabelos longos, de preferência lisos.
Adivinha? Era muito confundida com menino, afinal cabelo curto é coisa de menino!
A questão é tão enraizada que anos depois, na França, aos meus 26 anos a mesma situação se reproduziu. Cheguei com cabelos longos e quando fui cortá-los, o cabeleireiro pediu para eu refletir uns quinze minutos antes de aceitar cortar meus cabelos!
São sutilezas, detalhes subliminares do nosso quotidiano, que constroem a nossa subjetividade com um padrão do que nos defini como mulher.
Mulheres carecas ainda causam muito estranhamento. E esta tensão causada pela possibilidade de perder os cabelos pode fazer muito mal para elas. Passar por um tratamento pesado com dignidade abalada, não ajuda em nada.
Fiquei muito triste de ver que muitas mulheres ainda sofrem, e muito, ao se confrontarem com este aspecto do machismo.
Outro ponto pitoresco da questão estética é a curiosidade sobre a cirurgia no seio. Imaginem, nosso órgão de nutrição sofrendo alterações. Como se amamentar fosse uma obrigação.
Tive que lidar com a curiosidade alheia sobre meu seio: será que tiraram? Eu amo meu corpo e ele não me defini. Por esta razão, esta questão não abalou minha autoestima. Eu me vejo como uma mulher bonita, cheia de charme, independentemente do tamanho dos meus cabelos, com ou sem seios. Minha beleza e sensualidade vêm da minha essência, da minha luz, não do meu corpo.
Eu queria fazer como a Angelina Jolie. E, descobri que não era mais necessário ser tão radical nos casos como o meu. Minha cirurgia retirou um nódulo de 0,5 centímetros de diâmetro. Conclusão? Meus seios continuam os mesmos.
Mas, teve gente que não se aguentou e perguntou: “eles tiraram o teu seio?”.
Eu lembrei de uma história que a Maitê Schneider conta nas palestras dela.
Alguns homens, têm a necessidade de perguntar para uma mulher trans se ela operou. Oi? Operou o que? Adoro a resposta da Maitê para eles:
“Por acaso, eu pergunto o tamanho do teu pinto?”.
É incrível como muitas pessoas ainda vivem sem questionar o machismo estrutural. Esta coisificação da mulher já abala muito a saúde mental e emocional das mulheres sem câncer, imagem com câncer.
O câncer é uma doença que mexe, pouco, ou muito com o corpo das mulheres. De maneira temporária ou não, e isto pode levar muitas mulheres a perderem a confiança em si mesmas por causa de questões que deveriam ser menores, principalmente neste momento.
Nossa atitude diante desta doença é um fator relevante na cura. Imagino que tudo pode ficar bem mais pesado se deixamos estas questões afetarem nossa autoestima, e, consequentemente, nosso sentimento de dignidade. Pode se perder a força, fé e coragem tão necessárias para influenciar positivamente nossa cura.
Outro ponto que chamou minha atenção é a questão relacionada com a Crença da Mulher Maravilha (1). Dizemos que cuidar e acolher são atributos da mulher. Então, quando ela passa de cuidadora para uma pessoa que necessita de cuidados, ela pode se sentir perdendo parte da sua identidade.
Neste sistema machista e binário, a mulher é destinada à esfera doméstica. E, deve priorizar a família e cuidar da vida de todo mundo. Mesmo com vida profissional remunerada, as mulheres ainda guardam as responsabilidades da esfera doméstica.
Você consegue imaginar o sentimento de uma mulher ao descobrir que está com câncer e não poderá cuidar da família com perfeição durante um longo período? O bem-estar dela, que já era frágil em função da carga mental habitual, vai passar por desafios que vão muito além da questão médica do câncer.
De repente, de cuidadora ela precisa ser cuidada. A mulher forte que “dava conta de tudo” não corresponde mais as expectativas do papel definido para ela na estrutura machista, e situado na esfera doméstica.
Mais uma questão que se conecta com o câncer, a menopausa.
Você sabia que cerca de 67% dos cânceres de mama são receptores hormonais positivos?
Nestes casos, as células têm receptores que se ligam aos hormônios estrogênio (RE+) e/ou progesterona (RP+), que ajudam as células cancerígenas a crescerem e se disseminarem.
Isto significa que a mulher pode necessitar e ficar sujeita, por 5 anos, a ingestão de um bloqueador de hormônios cuja consequência é uma aceleração da menopausa.
A menopausa ainda tem muitos estigmas. Desde meus 52 anos estou na menopausa. Percebo, quando falo abertamente, como isto causa desconforto. É como se fosse um estado que devemos esconder, pois seremos julgadas.
Você sabe quais são as palavras mais associadas a Menopausa? Corpo da mulher, envelhecimento e lentidão sexual.
O corpo da mulher é coisificado. Assim, fica impossível, para muitas mulheres, pensar em questões acerca do envelhecimento sem refletir sobre o corpo.
O envelhecimento traz a perda do corpo da mulher como moeda de troca, salientando a preferência da aparência sobre a essência do ser.
As mulheres vivenciam as mudanças corporais da menopausa como envelhecimento com um significado de perda de posicionamento social. Estas visões machistas precisam ser ressignificadas.
O tabu mantido em torno da menopausa tem como causa o despreparo da maioria das mulheres para abordar esta etapa da evolução do corpo.
Por que temos tanta dificuldade em sair deste tabu? Como diria Gabriela Prioli: A quem interessa? Com certeza não a nós mulheres.
Uma evolução que deveria ser natural, passa a ser vivida de forma muita mais difícil. Saber que nem todas as mulheres têm efeitos negativos da menopausa é fundamental para evitar efeitos por razões sociais.
O que se propaga sobre a mulher, como por exemplo, a obrigatoriedade de ser jovem para existir, interfere na autoestima de forma violenta. Com a autoestima baixa, você tem efeitos no seu bem-estar, e consequentemente no cuidado com o seu corpo, na sua vida sexual, e mesmo na sua produtividade, entre outros. E, no caso do câncer, na sua cura e vida após o câncer.
Em 1996 a OMS (Organização Mundial da Saúde) dava mais ênfase à questão relacionada ao fato de a mulher cessar sua capacidade reprodutiva e ao estatuto de patologia da menopausa.
Se na estrutura social machista vemos a maternidade como a realização das mulheres, podemos perceber a relação forte entre cessar esta função e cessar nossa razão de existir.
Por exemplo, a ausência de informação leva algumas mulheres a associarem à velhice e o cessar da procriação à um ritual de passagem para que as relações sexuais sejam abandonadas.
Hoje a OMS já relaciona a menopausa com uma transição que é impactada pelas questões sociais. E, afirma que a menopausa não é uma doença.
Vale lembrar como as mídias contribuem de maneira subliminar com o perpetuar destas crenças maléficas sobre a menopausa. Compare nos filmes a quantidade de protagonistas homens, maduros com cabelos brancos, que são apresentados em plena atividade e com uma mulher jovem ao seu lado. A mídia, além de esconder as mulheres maduras, quando elas aparecem em uma relação com um homem mais jovem, falam dos preconceitos com respeito a este tipo de relação.
Lembram do filme Pretty Woman? O Richard Gere (1949) tinha um romance com a Julia Roberts (1967).
Lembram das Bond Girls? Vamos falar do filme de 2021, “Sem Tempo para Morrer”. Assim, a gente não deixa a mínima chance de alguém pensar que isto é coisa do passado: Daniel Graig (1968) tem envolvimento emocional com Léa Seydoux (1985).
Tudo isto impacta de maneira sublimar as mulheres. Precisamos olhar para esta construção social para deixar de querer ter 20 anos aos 50.
Para a gente viver a menopausa com leveza, principalmente quando ela é acelerada pelo câncer, precisamos entender emocionalmente que somos maravilhosas em toda e qualquer etapa da vida. Sentir que podemos, tanto quanto qualquer homem, ser quem quisermos. Sentir que continuamos lindas.
Precisamos falar mais sobre as mulheres que não sentiram nenhuma ou pouca mudança na sua vida após a menopausa para temos exemplos positivos. Principalmente daquelas que nem mesmo optaram por se confrontar com uma terapia hormonal.
Além de fazer bem para todas as mulheres, vamos contribuir muito com a cura do câncer de mama.
As consequências psicológicas associadas à menopausa são muito mais difíceis de ser avaliadas e pesquisadas quando comparadas com os sintomas físicos, dada sua subjetividade e relação com contextos pessoais de vida.
Ter conhecimento sobre os Desafios Sistêmicos do machismo estrutural, com certeza teve uma contribuição muito positiva nesta vivência. Pude crescer, expandir minhas sensações, aguçar minha observação e potencializar minha criatividade.
Minha energia foi renovada. Quero contribuir cada vez mais com meu propósito para democratizar o conhecimento e promover o autoconhecimento. Coloco um foco, ainda mais especial, sobre como contribuir com o bem-estar das mulheres.
Saio desta experiência com uma sustentável leveza de ser!
Sou grata à vida e a todas as pessoas que fazem parte desta experiência magnifica.
Um abraço soterno para todas e todos que me acompanharam nestes quatro episódios.
- A Crença da Mulher Maravilha, em síntese, é um fenômeno da educação machista que faz a mulher querer assumir tudo na esfera doméstica e com perfeição, o que traz uma carga mental enorme quando ela acumula isto com a vida profissional, ela acredita que deve “dar conta de tudo”. MEINHARD, V.R. Vamos voar juntas?. São Paulo: Álbum de Memórias, 2023. p.186 – 190.
Sobre Vera Regina Meinhard
Sou Vera Regina Meinhard, amo conectar pessoas para promover a consciência sobre a importância da inclusão da diversidade no alcance do sucesso sustentável, em especial a igualdade de gênero. Mestra em Sustentabilidade & Governança, sou criativa, inovadora, realizadora de sonhos e mãe da Saskia.
Meu propósito é contribuir com o desenvolvimento das pessoas. Após 25 anos como executiva do Groupe Renault France, desde 2013, por meio de diferentes abordagens, coloco-me integralmente à disposição deste propósito atuando na sociedade como escritora e empreendedora para trazer soluções em desenvolvimento humano: Consultoria em Gestão de Cultura Organizacional voltada para ESG e Inclusão da Diversidade, Facilitação de workshops, Mentoria Individual e Coletiva, Palestras, Treinamentos e Coaching.
Maísa Capelotti
Vera,
obrigada pela matéria que traz informação, experiências e, sobretudo, a reflexão para cada leitor(a).
Gratidão!
Vera Regina Meinhard
Oi, Maisa, que presente te ler aqui no meu blog!
Informação de qualidade é muito importante para sairmos dos rótulos, estigmas e preconceitos que dificultam a vida de muitas pessoas. Quando sabemos podemos escolher sair do paradigma e escolher outro. Obrigada, fico feliz com sua apreciação. beijos