Câncer, a revolta com os processos (Episódio 3)
Lidar com os polos emocionais é uma dinâmica que contribui muito com o nosso desenvolvimento.
Seria possível sentir medo, e ao mesmo tempo ter coragem para confiar em pessoas que eu não conheço? Ou ainda, avançar e recuar nas exigências dos meus direitos sem ter impacto negativo na minha cura?
Coração e mente precisavam estar em total conexão. Caso contrário, passaria o tempo saltando de um polo para o outro, obtendo somente os efeitos negativos de cada um deles. O desequilíbrio reinaria e só alimentaria minha ansiedade.
Quanto maior nossa capacidade de conectar mente e coração, maior nossa habilidade para aceitar o fluxo e viver a interdependência em um mundo cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo (1). Infelizmente, nossa educação ainda é baseada na crença de que controlamos tudo. Cada vez mais fica evidente quão difícil é concluir análises suficientemente boas para se criar respostas “perfeitas” e planejar.
Compreender como mitigar as consequências desta versão mais caótica de mundo pode melhorar muito nossa capacidade para influenciar os rumos da nossa vida e alcançar melhores resultados.
É inacreditável como os processos da AMIL e hospitalares contribuíram para reforçar a importância do gerenciamento da oscilação entre “medo do pior” e “fé no melhor”.
Nesta conexão com a minha finitude, precisei acreditar, em um primeiro instante, que era maestra de tudo. Eu quase acionei meus antigos gatilhos da racionalidade e do falso controle, uma crença que nos limita, e é um comportamento “entrópico” do medo.
Planejava com excelência meu roteiro de cura, como se tudo se passasse com outra pessoa. Ao mesmo tempo, ocupava uma posição de observadora de mim mesma. Uma posição que permitiu entender rapidamente que estava acionando um gatilho antigo e desnecessário. Hoje posso viver os dois polos, o medo e a coragem, sem me limitar.
Ambas as posições trazem oportunidades importantes que quando associadas potencializam os resultados. O lado positivo do medo acionava a racionalidade necessária ao senso crítico que evita cair no desespero e permite avançar na exigência dos meus direitos. O lado positivo da coragem reatava minha capacidade de aceitação das vulnerabilidades e me conectava com a necessidade de estreitar relações com o corpo médico e administrativo do hospital. E, me dava a segurança necessária para recuar quando preciso.
Assim, pude focar no processo da cura, o que significou passar muito tempo em planejamento e organização. O privilégio de ter um plano de saúde individual da AMIL me levou para o AC Camargo, um hospital referência no tratamento de câncer. Pude ser seguida por uma mastologista e um oncologista deste hospital. No entanto, isto só me dava segurança e confiança na competência da equipe médica.
E, para me sentir realmente segura, preciso mais do que o Curriculum Vitae da equipe médica. Preciso de uma certa lógica no processo para confiar e me entregar.
Uma certa ausência de conexão entre os diferentes setores trouxe mais uma pitada de fragilidade. E, mais medo ao reconhecer minha impotência para orquestrar tudo isto. Como paciente, parece que devia me subjugar a certos abusos de poder do sistema de saúde.
Muitas das pessoas que cruzei tinham aquela “falsa” empatia, que esconde a falta de competência para assumir a responsabilidade dos danos causados por seus erros. Algumas até dizem que estão te ajudando, quando na realidade devem corrigir o erro que fizeram.
Desculpas só são validas quando a pessoa que causou os danos se implica na busca de solução do problema que criou. Isto é o que F. Kofman chama de desculpas produtivas no seu livro Empresa Consciente (2). Desculpas fazem parte de um complexo sistema no qual assumimos funções com responsabilidade (habilidade para responder). Isto é bem diferente do pedido de desculpas que esconde o medo de receber um julgamento. Este é o círculo perverso que busca pessoas culpadas para queimar como bruxas na fogueira, ele gera um custo enorme para todo sistema.
A ausência de competência das pessoas em alguns postos, me fizeram perder muito tempo no processo de cura. Estes processos um tanto caducos, me deixavam com uma certa vontade de mudar o sistema. Ficava imaginando o custo acumulado destas ausências de responsabilidade.
Isto, sem falar do impacto na minha vida profissional. Imaginem, “contratada em CLT pelo câncer”, sobrava pouco tempo para trabalhar na minha empresa de consultoria.
Quando você é empreendedora, isto complica bem a vida. Eu continuei meu trabalho normalmente. Para gerenciar todas as inseguranças do processo, deixei de aceitar novos contratos. Não sabia ainda qual tratamento seria definido após a cirurgia.
Em cada certeza anunciada, eu vivia com o fantasma da dúvida. Ainda não sabiam me dizer se deveria passar pela quimioterapia, ou não.
Assim, era melhor esperar, e agradecer minha gestão financeira. Ela facilitou minha vida neste período. Aproveito para lembrar que a gestão financeira é mais um ponto deficiente da educação machista que as mulheres recebem. Muitas ainda não aprendem a fazer gestão do seu dinheiro, delegam. E isto pode causar muitos danos à vida delas.
Foi focando neste “contrato de trabalho” que nestes 45 dias de exames, até a cirurgia, meus olhos também se voltaram para os meus privilégios e no como os processos de saúde podem impactar a cura do câncer de mama.
Também tive uma sensação de opressão do sistema. Um ar de superioridade das pessoas envolvidas, querendo me colocar em uma situação de fragilidade aumentada, de uma dependência tóxica. Era como se as pessoas envolvidas soubessem sempre mais do que eu. Como se eu tivesse que aceitar suas regras sem questionar.
Eu não queria ser superprotegida. Estava frágil em uma parte de mim. O que é bem diferente de me sentir uma pessoa totalmente frágil, e incapaz de fazer a minha parte. Tipo, quebrada na minha totalidade. Neste momento, foi fundamental trazer toda a minha coragem para não sucumbir a estas atitudes em volta de mim. Elas poderiam me colocar em um lugar de dependência total. Retirando-me da atitude protagonista tão necessária. Quando isto ocorre, podemos ficar na espera de um milagre, acreditar que a cura será realizada pelas outras pessoas.
Rapidamente percebi como os processos da dinâmica hospitalar e do plano de saúde fatigam e consomem nosso tempo. Continuava íntegra e inteira nas minhas faculdades mentais, e questionadora das regras e processos, com meu nível de exigência altíssimo.
Sentia-me agredida quando tentavam me vender a crença da superioridade da bondade e empatia sobre a eficácia e eficiência dos processos. Para mim, isto é uma inversão de valores e totalmente distante da real necessidade. Ter relações amorosamente saudáveis neste momento é muito bom, é reconfortante. E, ao mesmo tempo, insuficiente para se obter a cura. Necessitamos de pessoas empáticas e responsáveis (hábeis em dar respostas).
Eu precisava lembrar o tempo todo às pessoas do hospital que eu continuava trabalhando e tinha uma agenda “paralela” ao câncer. Que meu trabalho, além de essencial no processo de cura, pois amo o que faço, é quem garante o pagamento do plano de saúde e de todos os outros gastos com minha saúde.
Planejamento é um dos meus talentos. Assim, podia detectar rapidamente todos os erros e abusos de poder no processo. Imagino que, não fosse este meu talento, eu teria feito hora extra no “contrato de trabalho com o câncer”.
Em pelo menos 3 casos, as pessoas da parte administrativa do hospital fizeram marcação e remarcação sem entendimento prévio com minha agenda. No meu caso, a rapidez na realização dos exames era parte essencial da cura. Assim, estes erros poderiam ter atrapalhado o meu processo.
Fico imaginando as pessoas que não fazem cruzamento das informações para ter certeza de que tudo está organizado de forma lógica, e segundo sua compreensão e disponibilidade de datas e horários.
Se eu me deixasse levar pela suposta superproteção, teria investido, com certeza, o dobro do tempo.
Você sabia que um caso simples de câncer pode se transformar em metástase e eliminar a possibilidade de cura?
Para que serve uma equipe hospitalar dedicada ao acompanhamento de uma paciente de câncer se ela não velar pelo rigor dos processos?
Ser simpática e empática marcando consultas em datas diferentes daquelas que disponibilizei, e sem me alertar, não facilitava minha vida. Querer remarcar consultas para concatenar consultas sem se preocupar em verificar se a remarcação é com meu oncologista, também não ajuda.
Eu tinha que verificar e corrigir o estrago das alterações em um planejamento que eu já tinha realizado com sucesso.
Neste momento no qual o tempo era ouro e o estado de fatiga era grande, isto tudo foi muito desgastante.
Mais tarde, tentei novamente utilizar a equipe de apoio. Isto me custou 2 semanas de espera para a definição do meu tratamento após a cirurgia.
Para completar, o resultado deste exame em atraso, não foi conclusivo. Tinha que fazer um exame suplementar para definir o tal do HER.
Foi aí que meu plano de saúde da AMIL também decidiu se manifestar de forma negativa. Até então, tudo era aprovado em menos de 24 horas, cirurgia, exames genéticos, etc.
O exame FISH que faz parte do rol de exames da lista da ANS, não estava credenciado em nenhum dos laboratórios do meu plano. Fiz reclamação na ANS. O prazo era de 5 dias para obter uma resposta. Decidi ligar para uma amiga que me ajudou muito com estas questões administrativas. Resultado?
Sem eu mover mais nenhuma montanha, o exame foi aprovado para realização no próprio AC Camargo. Isto sim foi milagre. Até hoje não sei como a coisa se resolveu. Foi a mão da “Deusa G”.
O que entendi desta situação? Existem solicitações que precisam de uma aprovação especial do plano. Como assim? Se faz parte da lista de exames que a ANS obriga os planos a darem cobertura, para que uma autorização especial?
Fui bem criticada durante os 2 dias em que lutei pelo pagamento do exame FISH pelo plano AMIL. Pessoas em volta de mim, diziam que eu não podia jogar com minha saúde priorizando ideologia. Claro que eu não faria isto, sou inteligente e podia arcar com os R$ 1.500 necessários para realizar este exame. Já tinha um prazo em mente, não esperaria a resposta da ANS e AMIL além de 72 horas.
Este exame era fundamental para definir se eu precisaria fazer quimioterapia ou não. E, eu escapei da quimio!
O que me move em todas as ações que tive, não é o meu caso em particular, é a situação das pessoas que talvez não tenham o privilégio educacional que tive para questionar fortemente todos os sistemas e acionar meus direitos.
Quem não tem dinheiro para pagar o exame, nem uma amiga especial para atuar no lugar certo, como é que faz? Espera a metástase? Faz quimioterapia mesmo sem precisar?
Eu grito, esperneio, reclamo, utilizo todas as vias (órgãos reguladores, reclama aqui, redes sociais, etc). Conheço meus diretos, vou atrás da legislação.
Lidar com a frustração da desigualdade social que se manifesta, tanto nos direitos, como na ausência de conhecimento sobre as possibilidades de busca de solução, me deixou triste.
Outro exemplo, o horário da cirurgia. Uma semana antes, eu ainda não havia recebido nenhuma informação. O grupo de apoio me informou que eu só saberia 48 horas antes. A pessoa que me acompanharia, e eu mesma, precisávamos nos organizar. Mesmo em “contrato CLT com o câncer”, eu tinha e tenho uma vida.
Liguei para a ouvidoria e informei que, se assim fosse, eu também diria 48 horas antes se eu poderia comparecer ou não. Resultado? Menos de 2 horas após este telefonema, recebi um e-mail com a confirmação do horário!
A ouvidoria do hospital explicou que as pessoas do administrativo dão prioridade para a agenda dos médicos e médicas. O que, até certo ponto, é natural. Mas, ninguém é Deus nem Deusa, é preciso gerenciar a prioridade das pessoas pacientes também. Indiquei para a ouvidoria o livro Influenciar (3), ele traz questões sobre erros de equipes médicas em função deste endeusamento do corpo médico. O livro traz estudos sobre como resgatar a importância da voz de todas as pessoas trabalhando em um hospital.
Outro ponto que me deixou bastante triste, foi o contrato que queriam me fazer assinar na hora da internação. Ele daria carta branca para o hospital me faturar custos hospitalares suplementares. Uma amiga me contou que teve a mesma conversa no hospital Einstein.
Mesmo em emergências, cansada, eu leio os contratos antes de assinar. O meu relato abaixo converge com o da minha amiga no hospital Einstein.
Na hora da internação eu questionei a atendente sobre esta cláusula e ela disse, “esta cláusula não serve para nada, pois isto não vai acontecer”. Imediatamente eu argumentei “se não vai acontecer, podemos retirá-la”. Mais uma tentativa desta pessoa “qualquer pessoa pode assinar isto, não serve para nada”. Ao que respondi “então assina você”. Claro, ela não assinou.
Para simplificar a coisa, e fazer minha internação, eu escrevi ao lado desta cláusula que nada seria pago se um outro documento assinado por mim ou pela pessoa que me acompanhava não autorizasse este gasto. A pessoa me disse “não pode rasurar o contrato”. Mais uma vez, eu utilizei meu poder de escolha: “ então não tem internação”. Claro que fui internada, e com o contrato alterado manualmente, pois eles sabem que isto é abuso de poder. E, também sabem do custo de anular uma cirurgia em cima da hora.
É muito triste sentir que é necessário gozar de privilégios para avançar e gastar menos. Triste porque a maioria da população deste país encontra-se do outro lado da linha.
Tive que trabalhar muito meu equilíbrio nos polos “avançar e recuar”, para atuar no lado positivo de cada um. Precisei aceitar que não podia mudar o mundo ao mesmo tempo que buscava minha cura. Precisava utilizar minha competência em organização para ser eficaz e influenciar a minha cura. Isto significava, muitas vezes, saber recuar.
Outras vezes, tive que optar entre minhas causas sociais e minha vida. Precisei aceitar que neste caso, conhecer alguém resolveria mais o meu problema do que solicitar competência das pessoas envolvidas neste processo.
Pior, a mulher que acredita na necessidade de um país com maior igualdade social, teve que desligar um pouco. Cada passo me colocava diante de uma questão que com certeza tinha impacto muito negativo na vida da maioria das pessoas em tratamento do câncer de mama.
Sem dúvidas, tenho uma gratidão imensa pela qualidade e competência técnica da minha mastologista e oncologista. Fui muito bem cuidada pelas enfermeiras e enfermeiros, pelas pessoas encarregadas com o cuidado da higiene do quarto, pelas pessoas que me transportaram de maca. Fui tratada com muito carinho e sei que toda competência médica foi colocada a disposição da minha cura.
E, todos estes processos podem e precisam ser melhorados para que todas as pessoas possam usufruir de um sistema de saúde que assegure sua cura com dignidade.
Aproveito para agradecer Dra. Marina, Dr. Fernando e “Deusa G”.
Obrigada pelo tempo dedicado a ler este texto, espero que gostem e seja útil!
- VUCA (the world is volatility, uncertainty, complexity and ambiguity): conceito que teve sua origem no universo militar e passou a ser utilizado no mundo dos negócios por volta dos anos 2010.
- KOFMAN, F. L’entreprise consciente: comment créer de la valeur sans oublier les valeurs. Paris: Des Ilôts de Résistance, 2009.
- Influencer: The New Science of Leading Change, livro escrito por Joseph Grenny, Kerry Patterson, David Maxfield, Ron McMillan et Al Switzler.
Sobre Vera Regina Meinhard
Sou Vera Regina Meinhard, amo conectar pessoas para promover a consciência sobre a importância da inclusão da diversidade no alcance do sucesso sustentável, em especial a igualdade de gênero. Mestra em Sustentabilidade & Governança, sou criativa, inovadora, realizadora de sonhos e mãe da Saskia.
Meu propósito é contribuir com o desenvolvimento das pessoas. Após 25 anos como executiva do Groupe Renault France, desde 2013, por meio de diferentes abordagens, coloco-me integralmente à disposição deste propósito atuando na sociedade como escritora e empreendedora para trazer soluções em desenvolvimento humano: Consultoria em Gestão de Cultura Organizacional voltada para ESG e Inclusão da Diversidade, Facilitação de workshops, Mentoria Individual e Coletiva, Palestras, Treinamentos e Coaching.
Jurema C F Soriano
Vera você disse tudo sobre esta jornada e como o sistema ainda é falho e desigual.
Se me permite uma sugestão, está sua jornada poderia ser transmitida ao maior número de pessoas possíveis, pois você dá voz a quem NUNCA tem principalmente em momentos de fragilidade mas de muita lucidez.
Vera Regina Meinhard
Obrigada Jurema! eu gostaria muito que meus textos chegassem a mais mulheres. Por enquanto, divulgo aqui, no linkedin, no Instagram utilizando linktree, no facebook. Quanto mais quem gosta divulgar, acredito que podemos alcançar mais vozes. Também estou totalmente aberta a ouvir sugestões sobre como aumentar o alcance. Beijos carinhosos
Vera Regina
Vera testando