E se invertêssemos a situação e ser hétero fosse um problema?

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E se invertêssemos a situação e ser hétero fosse um problema?

E se invertêssemos a situação e ser hétero fosse um problema?

Embora tivesse nascido numa família comum, sem histórico de heterossexuais ou invertidos em pelo menos três gerações, Lígia era uma menina diferente das outras.

Muito cedo ela percebeu que havia algo de estranho em seus sentimentos. Quando adolescente, reconheceu – aterrorizada – que gostava de homens. E logo entendeu que a sociedade nunca aceitaria sua forma de ser.

Afinal, ser hétero era sinal de depravação, de doença, no mínimo um indício de grande imaturidade sexual e emocional.

A princípio, família, professores e amigos não deram muita importância ao fato de Lígia preferir as amizades masculinas às femininas. Achavam que uma relação amorosa entre homem e mulher era essencialmente infantil e pouco digna de atenção.

No melhor dos casos, julgavam que os relacionamentos heterossexuais de Lígia eram um passatempo inofensivo e divertido ao qual ela se dedicava, esperando finalmente encontrar a mulher certa para, assim, ascender à sua sexualidade verdadeira.

Mas o fato é que Lígia continuou preferindo se relacionar com homens. Nada superava o constrangimento que sentia quando era obrigada a beijar ou abraçar outras mulheres em situações sociais, eventos, festas. Como era de se esperar, seu comportamento vinha sofrendo duras críticas de sua avó, que a todo momento cobrava:

“¿cuando me vas a presentar a tu novia?”.

Na escola, a perseguição foi ficando cruel. Colegas de classe começaram a apelidá-la de “saltinho” e, embora ela fizesse de tudo para não virar a cabeça pra trás e revidar o insulto, o sangue fervia e o rosto corava de raiva e de vergonha.

Certo domingo, durante o churrasco de aniversário de sua mãe, a fofoca sobre o desvio de conduta de Lígia virara assunto discutido calorosamente entre os membros da família. Tios, avós, primos… todos se divertiam fazendo conjecturas a respeito de um fato sobre o qual ainda não tinham certeza. Percebendo o zumzumzum crescente, Lígia levantou-se da mesa e gritou em alto e bom som:

– Sou heterossexual e me sinto muito feliz por isso! O Carlos é meu namorado e eu vou morar com ele.

Foi uma comoção geral. Em meio à penca de parentes profundamente desgostosos e escandalizados, a avó reagiu imediatamente:

– ¡Mejor puta que heterosexual!

E assim ela se viu obrigada a sair imediatamente de casa. Por um lado, foi bom: já era hora de ser livre, de ter seu próprio canto onde podia se sentir segura. Lígia achou maravilhoso poder parar de vigiar seus trejeitos, seu modo de falar, sua aparência. A vida conjugal com Carlos era ótima, cheia de amor e compreensão. Um bastava ao outro e, se pudessem, não teriam qualquer relação com o mundo externo.

O problema é que precisavam trabalhar para se sustentar e, no âmbito profissional, era necessário ter cuidado para acidentalmente não revelar nada que pudesse depor contra eles.

Na escola onde dava aulas, Lígia mantinha um comportamento extremamente formal e polido com colegas e alunos.

Nas festas de fim de ano ou nas reuniões comemorativas aparecia sempre sozinha.

As pessoas estranhavam a ausência de namoradas ou esposa, mas como Lígia nunca falava nada sobre sua vida pessoal, prevaleceu o diagnóstico de que ela era apenas tímida, fechada – talvez um pouco anti-social.

O rótulo perdurou por tempo suficiente para que fosse julgada inadequada para uma promoção ao cargo de coordenadora.

Sendo tão formal e rígida, como poderia ser uma boa gestora de pessoas? Por ironia, Lígia sempre havia se julgado extremamente profissional – considerava-se uma excelente professora e seus trabalhos acadêmicos recebiam sempre as melhores críticas.

Entretanto, com o passar do tempo, ela começou a se sentir insegura a respeito de suas capacidades.

Além da falta de ascensão profissional, havia algo que a incomodava profundamente. Ela se esforçava continuamente para ser a melhor em tudo o que fazia.

Era como se precisasse compensar o defeito da heterossexualidade em outras áreas de sua vida, tornando-se extremamente perfeccionista e exigente consigo mesma.

E, assim, por tabela, ficava permanentemente insatisfeita com seu desempenho, em qualquer situação que fosse.

Outra característica irritante em Lígia era o fato de se mostrar demasiadamente boazinha com os outros.

Embora não admitisse, no fundo no fundo sentia vergonha de sua orientação sexual heterossexual.

Uma forma de contrabalançar essa sua perversão, era mantendo-se sempre atenta aos desejos e necessidades dos outros. Acostumada a esconder ou minimizar seus próprios desejos, acabou tendo uma enorme dificuldade em defender suas próprias necessidades.

A vida corria dessa forma até que, aos 37 anos, incentivada por seu parceiro, Lígia resolveu fazer psicanálise. Mario, o analista experiente, precisou de muita paciência para superar uma fase de intensa transferência passional por parte de sua paciente. Embora não se julgasse um heterofóbico, Mario era constantemente questionado por Lígia em relação à sua capacidade de entender o que ela passava. “Você não dá valor aos meus sentimentos”, queixava-se a paciente.

Um dia, Lígia levou um texto ao seu terapeuta.

Era um conto fantástico, uma simulação que ela havia inventado. Numa sociedade onde a heterossexualidade era a norma, algumas pessoas insistiam em ser homossexuais.

Era vergonhoso ser homossexual e demonstrá-lo em público era sinal de depravação, de doença, no mínimo um indício de grande imaturidade sexual e emocional…

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