A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

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A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

No dia 24 de abril deste ano de 2023, recebi um telefonema inesperado da assistente da minha ginecologista.

Ela solicitou a organização urgente de uma consulta online. Nesta chamada de vídeo, descobri que o resultado de uma biópsia, em princípio sem importância e nada urgente, cuja possibilidade de resultado positivo se reduzia a 10%, deu positivo!

Uau!!! O nenúfar de Boris veio me visitar. Em seu livro, L’Ecume Des Jours, Boris Vian deu um novo significado para a palavra nénuphar (1), câncer. Antes, para mim, uma palavra atrelada às nymphéas dos quadros de Claude Monet. Aquelas maravilhosas plantas que residem nos jardins da residência dele em Giverny.

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

A boa notícia que ouvi da minha ginecologista e do radiologista foi:

“você tem o nenúfar que todas as pessoas queriam ter”.

Oi? Como assim? Todo mundo quer ter câncer de mama?

Minha família tem um histórico de câncer complexo. Mesmo assim, sempre acreditei que esta doença fazia parte do passado na minha cadeia genética.

Durante 24 horas minha vida ficou suspensa! Aos poucos fui entendendo e integrando esta nova realidade.

Percebi o quanto esta questão se conectava com os desafios causados pelas relações de gênero hierarquizadas. Notei que ainda tinha reflexos do “dar conta de tudo”. O câncer foi um gatilho, e quase recaio na armadilha da crença da Mulher Maravilha (2) e no modelo da Loba Solitária (3).

Por sinal, uma pesquisa deste ano de 2023, ESGOTADAS, do Laboratório Think Olga (4), traz um panorama desastroso da saúde mental das mulheres. No Brasil, quase metade (45%) das 1.078 mulheres entrevistadas, entre 18 e 65 anos, possuem um diagnóstico de ansiedade, depressão ou algum outro tipo de transtorno mental. A ansiedade faz parte do dia a dia de 6 em cada 10 mulheres brasileiras.

Este diagnóstico tem relação estreita com o viés de gênero que coloca a mulher na esfera doméstica e nos cobra comportamentos para “dar conta de tudo”, o que chamamos de Crença da Mulher Maravilha.

Decidi compartilhar minha experiência com o câncer de mama como uma forma de aprimorar minha libertação destes vieses. A cura da crença da Mulher Maravilha e do modelo da Loba Solitária vem com muita percepção de si mesma e muita prática. Toda mudança comportamental exige trabalho, não é automática, não vem só com a compreensão intelectual.

Compartilhar meus sentimentos, pode, quem sabe, trazer alguma pista para mulheres que, como eu, saíram do script da “esposa de” e assumiram uma vida profissional plena. Sair do script das relações de gênero hierarquizadas e manter-se em boa saúde mental demanda uma negociação consigo mesma. É imprescindível sair desta necessidade de dar respostas ao sistema de cobrança deste modelo social machista. Ele ainda permeia profundamente nossa educação. Precisamos aprender a cuidar de nós mesmas e deixar que cuidem da gente.

O câncer físico acabou sendo uma situação secundária diante da aceleração que ele desencadeou no meu processo de autoconhecimento. Ele criou mais uma oportunidade para eu olhar para o modelo machista no qual somos educadas.  Desde pequenas, somos treinadas para cuidar de todas as pessoas e de toda logística familiar.

Quando recebi a notícia, apesar da grande frustração de saber que passaria por um momento bem difícil, foquei na parte do processo que depende de mim. Planejei e executei o que é de minha responsabilidade para influenciar a cura.

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

O primeiro passo passou pelo emocional. Aceitar que isto me deixou com um baita medo de morrer e uma imaginação fértil sobre vivenciar uma ansiedade nunca antes vivida. A vida me lançava mais um desafio para experimentar a prática de viver plenamente o presente com um olho no amanhã. Uma provocação que caracteriza meus programas de desenvolvimento com o objetivo de resgatar nas pessoas a atitude protagonista.

Sentir minha vulnerabilidade física, ainda sem nenhum sintoma, foi algo estranho.  E, ao mesmo tempo, contribuiu muito para meu entendimento sobre a necessidade de ser cuidada.

Foi uma experiência singular. Sem sintomas, só com um diagnóstico, era difícil me sentir com uma doença com tantos tabus e atestados de morte na face das pessoas quando se fala dela. O sentimento que me permeava era o medo de total ausência de controle. Foi aí que meu talento para exercer uma atitude protagonista se revelou com toda sua graça e excelência de ser.

O que eu mais podia influenciar neste primeiro instante era deixar meu sentimento de medo pedir colo. Precisava aceitar que o momento demandava largar mão de tudo para me colocar realmente em primeiro lugar. Nada fácil me soltar ao ser cuidada por outras pessoas. E, quando experimentei, tive surpresas muito carinhosas.

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

Foi uma real alegria sentir que tenho ao meu lado um parceiro amoroso que pode me dar apoio. Acreditar no amor dele e pedir para estar ao meu lado, não somente emocionalmente. Estar também fisicamente todos os dias perto de mim, na minha cama, caso eu acordasse com ansiedade. Ele não hesitou nenhum segundo. Dia 24 mesmo se organizou para morar comigo durante todo o tratamento. Também se organizou para estar comigo nas consultas. Além da necessidade emocional, senti meu cérebro um pouco colapsado, eu precisava dele me amando, me fazendo rir, ouvindo os médicos. Ele desperta em mim toda minha alegria e o melhor de mim. Isto foi e é fundamental.

O mais difícil foi aceitar que ainda vivia inteiramente a complexa necessidade de “dar conta de tudo” quando se trata da minha filha. Ela é uma adulta extraordinária, e com certeza vive muito bem sua vida sem necessidade material da minha parte. E, também temos uma relação de muita proximidade, confiança e amor. Imaginar que teria que dizer para ela que estava com câncer, era como dizer: existe um risco de eu não estar mais aqui quando você precisar conversar comigo. Pior, quando precisar do meu abraço. Existe um risco de vida. Nesta época eu ainda desconhecia a evolução que tivemos nesta doença e o quanto a cura está presente no meu tipo de câncer.

Eu esperei ter mais certeza do meu quadro para criar coragem para contar. Coragem na realidade para abandonar a “mãe maravilha”. Imaginem, tudo isto se passava perto do aniversário dela e do Dia das Mães. Graças a minha diligência, das médicas e médicos, dia 8 de maio, alguns dias antes do aniversário dela, pude organizar um jantar e contar o que se passava.

Percebi o susto no rosto da minha filha se transformar delicadamente em cuidado comigo. Mais uma descoberta, ela realmente cresceu. Intelectualmente sabemos que uma filha cresce, os fatos estão lá. Agora, acolher emocionalmente que ela amadureceu e hoje é uma mulher que vai me trazer conforto emocional, tanto quanto eu posso trazer para ela, é outra história. Senti paz, segurança e orgulho. Esta é mais uma experiência de vida que vem consolidar o nosso amor. Amor entre mãe e filha, não é instinto materno, é uma relação que se constrói.

Contar com o apoio da minha psicanalista também contribuiu muito com meu bem-estar. Se por acaso, minha atitude protagonista resolvesse tirar férias, lá estava ela para não me deixar derivar nenhum segundo. Em um momento como este, é fundamental querer ver a realidade em vez de se esconder nas fantasias. Para eu poder gerenciar algo, preciso admitir que este algo existe. Então, para poder lidar com tudo isto, foi essencial assumir meu sentimento de medo e deixar fluir a dor da frustração. Gerenciar frustração é primordial para agir na nossa zona de influência e se deixar cuidar.

Outro apoio importante, e que me deixou com sentimento de segurança, foi o da minha prima. Ela passou por um processo similar e mais complexo do que o meu. Poder falar de câncer com alguém que você ama, tem certeza de que te ama, entende do assunto por experiência, e acolhe seus medos sem receio, é um presente muito carinhoso.

Emocionalmente cuidada e me permitindo sentir, meu mental pôde focar na solução. Pude me concentrar no segundo passo.

Há 4 anos mudei para São Paulo e elegi a Dra. Rute minha ginecologista porque confiei nela desde o primeiro dia. Assim, acreditei no seu diagnóstico: “seu caso é muito certamente curado com uma operação e radioterapia”.

Isto colocou meu talento de planejamento em atividade total. Minha competência de organização estava a todo vapor. Passei 37 dias correndo, visando ser operada dia 8 de junho, data que segundo minha visão de planejamento era a mais próxima possível. Tive que aceitar meu parceiro e minha filha organizando suas agendas com base na minha condição de paciente de câncer. Aceitar a disponibilidade destas duas pessoas foi um exercício de humildade. Era necessário aceitar que o amor delas me colocava em prioridade, e eu precisava disto.

O processo se iniciou com a identificação de pessoas competentes em áreas da medicina que eu nunca tinha utilizado: mastologia, oncologia e oncogenética. As indicações de profissionais precisavam ser de médicos e médicas que fossem credenciadas pelo meu plano de saúde da Amil. Minha ginecologista foi muito rápida e conseguiu duas pessoas de sua confiança no hospital AC Camargo.

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

Dia 2/05, eu já estava em consulta com a mastologista e o oncologista.

Nestas consultas, entendi que passaria um mês empregada pelo câncer, e quase em tempo integral. Era a melhor maneira de influenciar meu caso para a cura. Esta era minha parte, onde eu podia ser responsável, capaz de dar respostas. Mais uma vez meu talento de planejamento foi de grande valia na minha vida. Consegui assegurar os compromissos profissionais assumidos e dar uma pausa na tomada de novos compromissos. Precisei articular toda minha capacidade de gerenciar frustrações.

Não era nada disso que eu havia planejado para minha empresa em 2023, muito menos com o fluxo que havíamos criado com a Valeria Vargas no lançamento do meu livro “Vamos voar juntas?”.

Incrível, a Valéria escolheu a celebração da vida como contextualização no convite do lançamento do livro: “Na ocasião, vamos aproveitar a noite para celebrar a vida! ». Uau, que presença !

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

Para passar para a fase cirúrgica, “a priori” confirmada como passo inicial, era necessário fazer rapidamente todos os exames que iriam confirmar que o câncer era localizado.

É aí que a coisa começou a pegar sério no emocional. Médicos e médicas envolvidas começaram a falar de metástase:

“para confirmar a cirurgia precisamos ter certeza de que, ao abrir você, não encontraremos nenhuma surpresa.”

Surpresa? Como assim? É difícil gerenciar informações que para minha mastologista e oncologista fazem parte do cotidiano e para mim eram totalmente contraditórias. Afinal, tenho o câncer mais simples do mundo ou tenho metástase?

Passei por uns dias difíceis, focando só nas informações reais, baseadas em resultados de exames. Vivia o presente sem deixar que perguntas inúteis, do tipo: “se meu caso é o melhor possível, porque eles têm estas dúvidas sobre metástase?”. Fui vivendo o presente e esperando os resultados dos novos exames. Fui “tomografada” em todas as partes do meu corpo. Além de fazer toda uma batelada de exames nos ossos.

A surpresa do nenúfar (Episódio 1)

Com fé e coragem, fluindo no carinho e me deixando ser cuidada, vivi um mês preparando tudo para concretizar meus planos e ser finalmente operada dia 8 de junho.

Firme no meu propósito de democratizar conhecimento e oportunizar autoconhecimento, acredito que disponibilizar minha experiência pode contribuir com pessoas que passam pelo mesmo tipo de diagnóstico de câncer que eu tive. Um câncer que só se sente depois que ele foi retirado. E, agregar alguma forma de entendimento para as pessoas que se encontram em situação de apoiar entes queridos em processo de tratamento. É complexo seguir uma pessoa com este tipo de diagnóstico (5). No meu caso, quando todo mundo achava que o pior passara, foi o momento em que eu me senti passando pelo câncer.

Decidi contar esta experiência em 4 episódios. Nos próximos, falarei sobre os tabus que vivenciei e os processos que transformaram o câncer em contrato CLT em real tempo integral.

Finalizo agradecendo do fundo do meu coração à minha fé e coragem, à José meu parceiro, à Saskia minha filha, à Paula minha prima, à Dra. Rute e Dr. Caio, à minha psicanalista Camila.

  1. Designação comum às plantas aquáticas da família das ninfeáceas, muitas vezes cultivadas em recipientes de água devido às suas largas folhas flutuantes e às suas flores de pétalas brancas, amarelas ou vermelhas.
  2. A Crença da Mulher Maravilha, em síntese, é um fenômeno da educação machista que faz a mulher querer assumir tudo na esfera doméstica e com perfeição, o que traz uma carga mental enorme quando ela acumula isto com a vida profissional, ela acredita que deve “dar conta de tudo”. MEINHARD, V.R. Vamos voar juntas?. São Paulo: Álbum de Memórias, 2023. p.186 – 190.
  3. O Modelo Da Loba Solitária, em síntese, é uma extrapolação da mulher maravilha para a vida profissional, ele faz a mulher acreditar que ela é a grande responsável do objetivo coletivo e que se algo der errado, mesmo sendo de responsabilidade de outra pessoa, a culpa seria dela. MEINHARD, V.R. Vamos voar juntas?. São Paulo: Álbum de Memórias, 2023. p.192 – 196
  4. Laboratório Think Olga de Exercícios de Futuro – Esgotadas. [online]. Disponível em: < https://lab.thinkolga.com/esgotadas/>. Acesso em: 14 set. 2023.
  5. câncer no início, com menos de 1 cm e HER negativo.

Sobre Vera Regina Meinhard

Sou Vera Regina Meinhard, amo conectar pessoas para promover a consciência sobre a importância da inclusão da diversidade no alcance do sucesso sustentável, em especial a igualdade de gênero. Mestra em Sustentabilidade & Governança, sou criativa, inovadora, realizadora de sonhos e mãe da Saskia.

Meu propósito é contribuir com o desenvolvimento das pessoas. Após 25 anos como executiva do Groupe Renault France, desde 2013, por meio de diferentes abordagens, coloco-me integralmente à disposição deste propósito atuando na sociedade como escritora e empreendedora para trazer soluções em desenvolvimento humano: Consultoria em Gestão de Cultura Organizacional voltada para ESG e Inclusão da Diversidade, Facilitação de workshops, Mentoria Individual e Coletiva, Palestras, Treinamentos e Coaching.

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Comments
  • Jurema de C F Soriano
    reply
    4 de outubro de 2023

    Adorei ler o desbravar dessa mulher incrível, mas tb frágil, delicada e organizada.
    Na minha jornada tenho um lema, sempre que me sinto em uma situação da qual não tenho nenhum domínio. “Quem disse que seria fácil…”

  • Mariana Asdourian
    reply
    12 de outubro de 2023

    “Vamos voar juntas” é um dos melhores livros que já li – recomendo!

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